
Nas últimas semanas, observamos o crescimento da pressão por regras mais rígidas sobre a indústria de apostas online no Brasil. O argumento central gira em torno da necessidade de proteger o brasileiro do risco de endividamento. Uma preocupação legítima, especialmente em um setor pujante, recém regulado e ainda em amadurecimento, mas que tem sim a responsabilidade de atuar com seriedade. Entretanto, é preciso mergulhar nesse cenário e o analisá-lo com mais profundidade.
É importante apontar que, hoje, o brasileiro está inserido em um dos sistemas de crédito ao consumo mais caros do planeta. Cartão de crédito rotativo, cheque especial, crédito pessoal não consignado — modalidades cujos juros, em muitos casos, ultraam os 300% ao ano. Essas taxas são praticadas, frequentemente, pelos mesmos grupos financeiros que agora se colocam como defensores da saúde financeira da população.
Dados do International Monetary Fund (IMF), publicados pelo World Bank Group, apontam que o Brasil registrou em 2023 um spread bancário de 31,5% — o terceiro maior do mundo, atrás apenas de Madagascar (40,6%) e Zimbábue (107,5%). O interest rate spread, ou seja, a diferença entre a taxa de juros cobrada nos empréstimos e a taxa paga nos depósitos bancários, é um indicador claro da distorção no sistema de crédito. Em outras palavras, o o ao dinheiro custa caro, especialmente para quem mais precisa.
Outro ponto relevante nessa discussão é a postura do varejo em relação às críticas ao setor de apostas online, que merece atenção por ser contraditória. O discurso remete à preocupação com o endividamento, mas muitos desses grupos mantêm modelos de negócio fortemente baseados na oferta de crédito, frequentemente a juros elevados.
O Varejo Finance Report 2025 mostra que, em 2024, varejistas com operações financeiras integradas cresceram, em média, 9,4% em receita líquida, frente a 3,1% daqueles focados apenas na venda direta de produtos. Aqui nos referimos a cartões private label, crediários e financiamentos que respondem por uma parcela significativa de sua rentabilidade.
Além disso, segundo informações da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs), o mercado de cartões no Brasil movimentou mais de 4 trilhões de reais no último ano — cerca de 45% do consumo das famílias. Nesse cenário, as críticas ao setor de apostas podem ser vistas menos como uma defesa da saúde financeira do consumidor e mais como uma tentativa de preservar a centralidade do varejo na intermediação da renda.
Ainda sobre o reflexo do peso estrutural desse sistema no orçamento, segundo dados da Confederação Nacional do Comércio (CNC) relativos a 2024, a dívida das famílias brasileiras já representa cerca de 30% do PIB.
E ao pensar nisso, surge o paradoxo: quando o brasileiro aposta 20 reais em um jogo, o debate público se acende em torno do “risco à renda disponível”. Mas no momento em que esse mesmo cidadão paga 200 reais de juros por atraso na fatura do cartão, a resposta institucional costuma ser: “falta de educação financeira”.
A pesquisa Panorama Crédito no Brasil, realizada pela fintech Creditas, aponta que os principais motivos de endividamento no país são: despesas inesperadas, uso excessivo do cartão de crédito, atraso no pagamento de contas, desemprego e compra de bens específicos. É possível notar um padrão.
É evidente que o setor de apostas – o mesmo que orienta que aposta não é investimento e sim entretenimento - precisa ser regulado e fiscalizado (evitando-se assim o mercado ilegal com mais de 50% de participação no Brasil, sem qualquer tipo de trava e proteção ao apostador), como qualquer outro que lide com dinheiro e risco. Mas a discussão sobre o endividamento precisa ser mais honesta:
A preocupação é mesmo com o endividamento do brasileiro? Ou com o redirecionamento da renda disponível, que agora começa a circular, fora dos canais tradicionais de intermediação financeira?
O debate precisa se afastar da retórica moral e se concentrar nos dados concretos, em uma regulação coerente e por condições equitativas entre os setores que competem pelo orçamento das famílias brasileiras. Apostar R$ 20 pode parecer uma imprudência. Mas cobrar juros de três dígitos ao ano — e naturalizar isso — é o verdadeiro escândalo.
Fernando Vieira
Presidente Executivo do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR)